quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Rogério Casanova,

magistral, insuperável, fascínio recorrente da inteligência.

Na revista LER de Janeiro de 2012:
«A arma mais eficaz no seu [de Christopher Hitchens] arsenal retórico era possivelmente a intimidação por osmose. Ao observá-lo numa das suas prodigiosas encenações da arte de não ter razão com muita força, era compreensível sentir uma ansiedade acompanhada de um desejo complexo: nunca ser forçado a ter razão contra ele. Não se queria estar do lado oposto num debate com Hitchens por motivos mais ou menos semelhantes aos de não querer estar do lado oposto num debate com um míssil balístico intercontinental.
[…]
A sua morte com aviso prévio (recebera o diagnóstico terminal com um ano de antecedência) acabou por fornecer-lhe mais uma polarização, mais uma súbita passagem de uma posição para a posição oposta. Pessoalmente, tenho pena de não poder ver os seus frustrantes mas inquestionáveis talentos submetidos à lenta entropia que desgasta qualquer carreira pública; gostaria que a sua arte para não ter razão de maneiras interessantes fosse aplicada a dilemas que nunca abordou: a intranquilidade do envelhecimento, a degeneração das faculdades intelectuais. Suspeito que, seguindo o seu habitual percurso contra a corrente, fosse melhorando à medida que se sentisse a piorar; talvez nunca viesse a precisar da tolerante gratidão que se estende a todos os que, no pico da sua forma terrena, nos souberam entreter.»
Pastoral Portuguesa”, acerca de Christopher Hitchens [13.Abr.1949-15.Dez.2011]
- Em português actual antigo.
_______________ 

«Durante anos, um dos segredos mais bem guardados da literatura soviética proibida, Vida e Destino (escrito em 1961, mas apenas publicado no Ocidente em 1980) foi existindo como eco de um murmúrio, cuja distinção era ter sido o primeiro livro a dizer o indizível: que o “sonho” soviético era indistinguível do pesadelo nazi, que os russos não eram menos vítimas de Estaline do que haviam sido de Hitler.
[…]
Se a legitimidade da literatura de testemunho é “ter estado lá”, estamos possivelmente na presença das credenciais mais completas de todos os tempos. Um fortuito Zelig da atrocidade, Grossman marcou presença no cerco de Estalinegrado, na batalha de Kursk, na libertação de Treblinka e na queda de Berlim.
[…]
Em qualquer tirania em pleno funcionamento, a primeira vítima é a presunção de inocência. O Estado não se pode dar ao luxo de presumir inocência, pois está demasiado ocupado a presumir culpa. A chave da mentalidade totalitária é o medo de que algures haja um potencial inimigo ainda por identificar. Mas a sua suprema perfídia é a capacidade de estabelecer uma ansiedade geral sobre a condição de inocência até nos próprios inocentes.
[…]
O centro artístico do livro é a aterradora sequência de 12 páginas em que Sófia Levinton, uma médica judia, é levada para a câmara de gás com uma criança pela mão.»  
Vassili Grossman – Destino Traçado”, acerca deste livro, incluindo uma interessante conversa à margem com Filipe Guerra e Nina Guerra, os tradutores, a quem devemos tantas coisas tão bem feitas.
- Em português atual moderno, heroico, de rutura.