segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Rui Nunes

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fui-me apercebendo lentamente de que a língua, que qualquer linguagem, especialmente na sua articulação, manifesta poder. E há em mim uma grande repugnância pelo poder, por qualquer forma de poder. O poder dos sentimentos, o poder sobre o outro. Ora esse poder manifesta-se na linguagem, na chamada fluência – em que as palavras se procuram umas às outras independentemente daquele que fala.
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a vírgula, aquela paragem, aquele cortar o fôlego, aquele sopro que se quer prolongar e não consegue, isso é que é terrífico na escrita. E é por aí que se introduz a violência.
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Não gosto dos ícones da pátria, não gosto de pátrias, fronteiras e hinos. Mas o problema é o ruído. Estou sempre a ouvir gente. Estamos aqui e estamos a ouvir gente. […] E depois há pouca sobriedade nas palavras, as pessoas falam desesperadamente.
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é  impressionante a semelhança que existe para mim entre um homem morto e um bicho morto. Não consigo estabelecer a dignidade da morte do homem. É a mesma que na morte de um melro. Um ser morto é isso, e não há muito mais a dizer sobre ele. Mas isso também está ligado à minha ausência de crença. Eu bem gostaria de ser crente. A minha morte não vai ser diferente das mortes dos bichos todos, que morrem porque é essa a pobreza que nos espera. Não há, para mim, nenhum Deus que nos absolva, que  redima, que me dê o que quer que seja.
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Nós vivemos confrontados com uma linguagem que esqueceu uma quantidade enorme de nomes. […] Agora já não há cegos, há deficientes visuais. Já não há surdos, há deficientes auditivos. […] Quando se afasta o cego e se coloca o deficiente visual, ilumina-se de uma maneira impiedosa o outro. É uma espécie de maldade. E se eu disser: sou cego (ainda não sou, mas para lá caminho), qual é o problema? Mas se disser que sou deficiente há uma menorização do meu próprio estatuto como pessoa. As palavras, mais uma vez, estão carregadas de malignidade.
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