sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Rogério Casanova

na LER de Fevereiro de 2014:


Pastoral Portuguesa

- ‘O Antologista’ – a propósito do centenário de William Burroughs [05.Fev.1914-02.Ago.1997]

«[…]

Enquanto Norman Mailer feria a sua esposa com um canivete, Burroughs matava a sua com um tiro na cabeça. Céline ou Pound sinalizaram a sua misantropia com insultos raciais; Burroughs preferiu declarar que todo o género feminino era um erro biológico e que, assim que o vexante problema da reprodução fosse resolvido, o extermínio de todas as mulheres seria um passo necessário e benéfico.

[…]

Uma das suas últimas narrativas publicadas, The Place of Dead Roads, inclui uma rotina escatológica em que a rainha de Inglaterra é assassinada por uma guerrilha homossexual, que a bombardeia com gases intestinais*.

[…]»

- ‘Consultório literário’

«Agora que temos nova tradução portuguesa, pode dizer-nos se concorda com a opinião expressa por um conhecido escritor português de que a leitura do Ulisses é um acto de masoquismo**?» - Carla Gomes

«Cara Carla,

[…]

Ulisses sempre me pareceu uma escolha estranha para esta batalha (quando logo ali ao lado, em Finnegans Wake, há um candidato mais plausível). É um romance cuja principal estratégia artística é a correcção de todas as percepções não-examinadas sobre a realidade e sobre as convenções que usamos para a representar. Mas todo o esforço que exige é amplamente recompensado.

Exactamente o mesmo, suponho, que algumas pessoas dirão sobre grampos para mamilos.»

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* Vacas de Rasdorf, voilà

** «[…] O cubismo é desconstrução. Ah, uma pintura de Picasso é bonita. Não, não é bonita. Nem Picasso queria que fosse. Ele está a cultivar o feio. Stravinsky faz música que são guinchos. O truque está justamente aí. Isto contagia a literatura. Ler o "Ulisses" do Joyce é um exercício de masoquismo. Ele leva duas páginas a descrever um armário. […]

José Rodrigues dos Santos em entrevista a Maria Ramos Silva, no i de 05.Out.2013


- x - 


Deixar saudades e corrigir dicionários”, acerca da literatura obituária.

«[…]

um jornal português teve em arquivo, durante quase uma década, o obituário de uma figura pública de frustrante longevidade, no qual se podia ler uma comovida declaração de Urbano Tavares Rodrigues. O suposto falecido sobreviveu-lhe – e arrisca-se a sobreviver ao jornal.

[…]

Da preservação poética de uma memória passou-se a um protocolo social - em prosa. Mas o objectivo do obituário obrigaria sempre a um impossível acto de equilibrismo: mesmo perante a morte da celebridade mais amada e consensual, haverá sempre um abismo entre as necessidades da família e as necessidades do público, um abismo que o melhor epitáfio é incapaz de transpor. A emoção individual é intransmissível; a emoção colectiva é, por definição, um cliché. Na ausência de um meio-termo, não admira que se tenha optado pelo cliché. Alguns lugares-comuns, afinal, podem ser revitalizados: pelas circunstâncias, pela força da repetição, pela sensação de que o banal só é dito quando mais nada há a dizer.

Hoje, sabemos quase sempre com que contar quando morre uma figura pública. Quem parte (quem desaparece do nosso convívio) é um ícone, uma figura emblemática, ou uma figura incontornável. A sua morte é uma perda irreparável, e causa um profundo pesar. A sua ausência deixa saudades. Na sua vida, permaneceu sempre fiel a qualquer coisa, geralmente aos seus princípios, ou às suas convicções.

[…]

Nabokov, no seu ensaio The Art of Literature and Common Sense, recorda uma tira de banda desenhada: um limpa-chaminés, caindo do telhado de um edifício alto, observa durante a queda um cartaz com um erro ortográfico e interroga-se, em voo picado, porque ninguém se dera ao trabalho de o corrigir.

[…]

O obituário inverte esta ordem da especulação: dá-nos a morte, sem espinhas; dá-nos o suficiente da vida para preencher as lacunas e recombinar os fragmentos; e empresta aos mortos o tempo que já não têm, para que vivam um pequeno número de vidas adicionais, na imaginação de terceiros.»