sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Tédio | Atenção

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o tédio, esse, é hoje uma velharia erudita e literária que já só se apresenta como objecto de uma arqueologia. O tédio implicava a percepção de um tempo exasperante de lentidão, de tal modo privado de novidade que abria aquele abismo do spleen baudelairiano: “J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans”. Já não é possível sentir o tédio porque o regime de superabundância digital, que faz com que estejamos sempre ligados a redes de comunicação e imersos nos fluxos de distracção que elas fornecem, provoca-nos uma estimulação sem repouso.
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Privada temporariamente de ligação às redes, a maior parte das pessoas não consegue recuperar a capacidade de sentir o tédio: passa imediatamente ao pânico. A concentração e a atenção tornaram-se bens raros, de tal modo que se pode dizer que o princípio da raridade se deslocou radicalmente do pólo da produção para o pólo da recepção. Daí que se tenha tornado tão importante, actualmente, uma “economia da atenção”. É ela que domina o mercado. E porque é um recurso raro, assistimos a uma corrida pela sua posse, por parte desta nova economia. Sabemos muito bem como o jornal, que foi em tempos “a oração matinal do homem moderno”, tem dificuldade em sobreviver nesta nova economia, com outras solicitações “atencionais”. E a indústria do livro só sobrevive à custa do papel impresso que não solicita, em grau elevado, a energia mental da atenção.
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António Guerreiro, "Onde está o tédio?" | Público/Ípsilon, 01.Ago.2014