sexta-feira, 1 de maio de 2015

Acordo Ortográfico [90]

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Todo o processo de engendramento e implantação do Acordo Ortográfico de 1990 só tem paralelo nas experiências agrícolas de Lissenko: a ortografia, como o trigo duro, tem de se vergar às miragens de uma ideologia (que tem nome de “lusofonia”, mas é muito mais do que ela) e conformar-se aos desígnios de políticos e cientistas pioneiros, ditos linguistas, mas que são na verdade agentes de uma ciência politizada. Juntos, gritaram em coro, antes de perderem o pio: “A ortografia é a arte plástica do Estado”. Quem lê jornais, escritos públicos e documentos oficiais percebe que está instalada a anomalia ortográfica (em meia hora de televisão, no dia 25 de Abril, li dois “fatos” em vez de “factos”) e que a aplicação do AO90 é tão desastrosa e tão contrária aos efeitos pretendidos (temos agora três normas ortográficas no “espaço lusófono”) como a agricultura de Lissenko. E é já tão paródica como ela. O que é irritante é que toda a verdade de facto exige peremptoriamente ser reconhecida e recusa a discussão. Por isso é que os políticos com responsabilidade nesta matéria e o respectivo braço armado científico (os cientistas pioneiros do laboratório linguístico de onde saiu o AO90) recusam sair a público e discutir os resultados da sua bela obra: mostram-se às vezes irritados com o ruído da paródia. Mas apostam no silêncio, à espera que das intervenções genéticas no trigo duro nasça, se não cevada e centeio, pelo menos erva para forragens.»

Já agora...

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Como saltar do “órgão eréctil” para o AO? Fácil. Ao “órgão eréctil” foi-lhe capado o cê. Recordemos. As consoantes mudas são eliminadas quando não proferidas na pronúncia culta. No caso, o cê foi à vida, o que quer dizer que se alguém insistir em pronunciar “eréctil” isso significará que é um grandessíssimo bronco (a boa notícia é que, sendo bronco, não é necessariamente impotente). Estamos, pois, assim. Viva a fonética! Hipótese: em Portugal existe um grave problema de surdez. Ou isso, ou quem assinou o AO deve responder por crime de lesa-língua (as duas teses não se excluem entre si).
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alguém, por amor de Deus, revogue o suicídio acelerado da língua. Sem esquecer que estamos a morrer orgulhosamente sós.»

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Obscuro é o Acordo. Nas motivações, no teor e nas consequências. As últimas são desastrosas! Nunca se viu tanta asneira junta. É “fato” para facto, “contato” para contacto, “impato” para impacto, “infecioso” para infeccioso, “batéria” para bactéria, “perfecionista” para perfeccionista... Seria fastidioso prosseguir. Dirão: isso são erros! Não constam do Acordo. Ah, pois é! Mas curioso mesmo é que ninguém os escrevesse antes do dito. Quanto ao teor, já os especialistas explicaram como a mítica unificação resultou num labirinto de variantes ao gosto do freguês e quão perverso é o critério da pronúncia culta (Coimbra? Porto? Funchal?). A parte fácil são as motivações: novos dicionários, prontuários, livros escolares e adaptações de clássicos dão dinheiro a muita gente (além dos instrumentos online).
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A ideia de fazer um referendo sobre o Acordo Ortográfico é boa.
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Votarei "não" com muito gosto e vontade de acabar com essa malfeitoria à comunidade dos portugueses e dos que falam português.»
José Pacheco Pereira, "Referendar o Acordo Ortográfico" | revista Sábado, 23.Abr.2015

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O presente título pode gerar certa ambiguidade que esclareço de imediato. Tivesse eu escrito "alto e pára o baile!" e o leitor perceberia logo que se tratava de uma ordem para desligar a música. Com o (des)Acordo Ortográfico, tanto lhe será permitido pensar isso como o oposto: bora pró baile!
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uma reforma que decapita todas as consoantes mudas quer-me parecer coisa tão radical que nem no chamado 'período do terror' da Revolução Francesa, quando diariamente rolavam cabeças que era um disparate!
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Ockham inventou um princípio que diz mais ou menos isto: havendo duas hipóteses igualmente válidas, escolhe-se a mais simples (na realidade, o que ele disse mesmo foi: pluralitas non est ponenda sine necessitate). Ora bem: se 'pára' se distinguia de 'para', simplificando a compreensão e a leitura, porquê complicar?
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A falta que faz às vezes uma navalha de Ockham
Ana Cristina Leonardo, "Alto e para o baile!" | Expresso/E, 01.Mai.2015