sábado, 2 de janeiro de 2016

Todas as semanas José Cutileiro avia um morto

Um dos meus abscônditos e impartilháveis divertimentos é o de contar as palavras interpostas entre o sujeito e o predicado da oração principal do mítico e extenuante primeiro parágrafo dos obituários os melhores da imprensa portuguesa com que José Cutileiro [JC] nos desafia, regala e ensina no Expresso.
Por exemplo, «Bajraj Khyatriya Birabara Champati Singh Mahapatra morreu no passado dia 30 de Novembro.» seria uma abertura quase inimaginável em JC. 
«Bajraj Khyatriya Birabara Champati Singh Mahapatra, último Rajá de Tigiria, reino de menos de 60 quilómetros quadrados no meio das florestas de Odisha na Índia Oriental, onde os seus antepassados se estabeleceram em 1246, desde então assegurando o poder em linha pura e varonil, havendo ele próprio subido ao trono em 1943, aceite de bom grado o domínio inglês quando este chegara, entendendo-se para vantagem mútua com a Companhia das Índias Orientais que lhe deixava grande liberdade de acção, incluindo cobrança de impostos nos seus domínios tradicionais (numa governação invulgarmente tolerante, a única cadeia do reino era um telhado assente em quatro colunas, sem paredes: a pena mais pesada era o Rajá deixar de falar ao condenado) e aceitando, em 1947, o estipêndio decretado pela Índia independente governada pelo Pandita Nehru — muito menor do que os rendimentos históricos que até então lhe haviam cabido e suprimido em 1975 pela filha de Nehru, Indira Gandhi —, morreu no passado dia 30 de Novembro, depois de doença breve sobre velhice debilitada, na sua residência há 28 anos, miserável casebre de terra batida com asbestos por telhado que deixava passar água da chuva, em cama pobre de madeira, grande oleado a servir de manta e meia dúzia de cadeiras de plástico, cercado por muitos súbditos fiéis que em multidão se transformaram na cerimónia fúnebre que se seguiu, cada um dos camponeses de Purana Tigiria pagando 10 rupias para a cremação, tal como lhes havia pedido o Rajá (o qual nos últimos anos preferia que lhe chamassem “ajá”, o que na língua local significa “avô”).
[...]»
Do sujeito principal ao predicado «morreu», 148 palavras; 255 palavras — contando como uma as seis do mnemónico nome do Rajá — antes do primeiro ponto final.
É quase sempre assim. Além do gozo salutar de ir escandindo a bela prosa, a divisão das orações nos primeiros parágrafos de JC não deve andar longe da eficácia do sudoku na profilaxia do Alzheimer

O pior é quando de longe em longe o nosso diplomata se passa dos carretos, atalha cerce e temos de engolir a saliva que ficou por gastar na falta das orações com que semanalmente se compraz a atormentar o fôlego do leitor até ao primeiro ponto final da peça. Foi o que aconteceu em 21.Fev.2015Carl Friedmann Djerassi morreu na sua casa de São Francisco da Califórnia no passado 31 de Janeiro de complicações de um cancro nos ossos.»] e ia sucedendo em 15.Ago.2015Samuel Pisar, que morreu de pneumonia em Manhattan em 27 de Julho passado, foi um advogado internacional especializado em relações económicas,»], não fora o primeiro ponto final da peça surgir à distância apneica de 243 vocábulos, assim se compensando o leitor adicto, como eu, da frustração de entre o sujeito e o predicado principais não haver senão a míngua de 11 palavritas.

Para que se não diga que o Plúvio é um chato.