sexta-feira, 24 de março de 2017

Da banalidade rara e da identidade

Sexta-feira rara, esta, em que o padre Anselmo Borges e o desbatinado António Guerreiro, operários incansáveis do pensamento, citam Peter Sloterdijk em jornais diferentes. 
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Os problemas - filosóficos, éticos, políticos - estão aí, imensos, desafiadores, urgentes. E não se pode ficar indiferente, pois é a nossa própria humanidade enquanto tal que está em jogo. Béatrice Jousset-Couturier, em "Le transhumanisme. Faut-il avoir peur de l'avenir", com prefácio de Luc Ferry, lembra o debate entre Jürgen Habermas e Peter Sloterdijk, declarando este: "A domesticação do ser humano constitui o grande impensado em relação ao qual o humanismo desviou os olhos desde a Antiguidade até aos nossos dias." E, contra a tese da descontinuidade metafísica entre "o que é" e "o que é fabricado", afirma uma continuidade, sendo neste contexto, pensando no pós--humanismo, que os coreanos do Sul elaboram uma carta ética dos robôs. Caminhamos, sem problemas, para hibridações de várias espécies? Com o acesso das novas técnicas a uma elite ou minoria, não surge o risco "totalitário" do controlo dos indivíduos?
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Ao defender que o homem é, desde sempre, o resultado de uma antropotécnica que procede por selecção e domesticação do homem pelo homem, Sloterdijk punha fim ao discurso do humanismo e interrogava a condição que nele desempenha o saber filosófico, a literatura e as artes. Mais tarde, numa entrevista, ao falar do “cibernético-biotécnico”, isto é, da convergência do organismo — “o que nasceu” — e da máquina — “o que é fabricado” -, Sloterdijk acrescentou uma outra humilhação sofrida pela humanidade, ao longo da sua história, às três que Freud tinha enumerado: a humilhação infligida por Copérnico, ao revelar que a Terra não é o centro do universo; a humilhação provocada por Darwin, ao revelar a ascendência animal do homem; e a humilhação, da qual Freud se reclamava o autor, infligida pela psicanálise, ao descobrir que o homem é determinado por forças inconscientes que não controla. Essa quarta humilhação acrescentada por Sloterdijk consiste em mais uma etapa na “substituição das descontinuidades metafísicas por continuidades pós-metafísicas.
[…]»

Ontem, quinta, tivéramos Paulo Tunhas que sabe da poda filosófica e escreve bem. Só por isso já mereceria atenção, se não a merecesse, que merece, pela concordância ardorosa e alvoroçada discordância que concita e suscita, recíproca e reversamente, antes pelo contrário, embora nesta vertente da perspectiva Miguel Tamen continue insuperável. *
Dizia eu que Paulo Tunhas escreveu ontem uma boa peça que na parte do Maomé coincide com a do Ferreira Fernandes de hoje, "E andamos nisto: tapar com uma peneira" | DN, 24.Mar.2017.

Apreciei a coça que, nos comentários, o sobranceiro esquerdista progressista jurista José Pedro Faria, por isto mas sobretudo por isto levou do valente Alberto Freitas, aqui e aqui. Caso para dizer que desta vez o doutor Faria veio por lã e foi-se tosquiado.

A humanidade não é caso simples. Por exemplo, continua-se-me por destecer o dilema acerca de como foi dada a notícia do episódio teratológico acontecido no México no início deste ano.
Não consigo embarcar no consenso de comunicação, replicado em todas as línguas e canais, com que se falou do nascimento e, três dias depois, morte de um bebé com duas cabeças.
Não eram, afinal, «dois bebés»?
Se se tratasse de quatro pernas e uma cabeça, diriam «dois bebés com uma cabeça»?
Depois, estou sempre a lembrar-me do Marcello Mastroiani [ou não é ele?] a interrogar-se no "What?" de Roman Polanski [1972]: «Com que direito a minha cabeça se intitula dona de mim?»

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* «[...] Não ocorre proibir quem quer que seja de fazer o que quer que queira aos ligamentos dos joelhos; como não ocorre proibir quem quer que seja de se pregar de moto próprio a uma cruz nas Filipinas; e só ocorrerá proibir a escravatura, porque não acontece de moto próprio; e considerar autorizar os toiros de morte, porque não tenham moto. [...]»